A nomeação da primeira “ministra” de IA na Albânia reacendeu discussões jurídicas importantes: e se isso acontecesse no Brasil? O governo albanês surpreendeu ao anunciar a nomeação simbólica de Diella, uma ministra digital criada por inteligência artificial. Sua missão? Supervisionar contratos públicos e impulsionar a transparência nas licitações.
Diella discursou no Parlamento, afirmando que não veio para substituir humanos, mas para auxiliá-los. Rapidamente, tornou-se uma figura global, gerando reações diversas, desde entusiasmo tecnológico até questionamentos constitucionais.
O que está em jogo com a ministra de IA?
Apesar do governo afirmar que Diella não tem poder decisório e atua de forma complementar, a formalização de um “posto ministerial” para uma IA representa uma mudança simbólica importante. Em teoria, nenhuma inteligência artificial pode exercer funções públicas, pois a responsabilidade civil, administrativa e penal exige um sujeito de direito, com consciência, vontade e responsabilidade jurídica.
Diella, por mais “transparente” e “neutra” que pareça, é uma criação algorítmica. E algoritmos são treinados por humanos, com dados humanos, refletindo seus vieses e decisões.
Transparência e accountability
O objetivo declarado é nobre: combater a corrupção. Contudo, como garantir isso se não sabemos quem programou Diella, quais são suas fontes de dados, seus critérios de avaliação e, principalmente, quem responde por ela em caso de erro, exclusão injusta ou favorecimento disfarçado?
Não há transparência real sem accountability humana. Um sistema de IA que detecta irregularidades pode ser uma ferramenta poderosa, desde que subordinado a autoridades públicas, sob supervisão judicial e controle social.
Caso contrário, corremos o risco de terceirizar decisões críticas a um “oráculo digital” sem rosto nem voz, mas com poder efetivo sobre vidas, recursos e direitos.
O risco da substituição gradual por IA
O discurso de que “a IA está aqui apenas para ajudar” parece reconfortante. No entanto, é preciso encarar o fato de que toda automação — por definição — desloca algum grau de atribuição humana. O que começa como um assistente pode, sem os devidos limites, tornar-se protagonista silencioso.
Além disso, esse tipo de iniciativa acende um alerta global: o uso político da IA como cortina de fumaça para decisões tecnocráticas sem debate público. Uma máquina que “aponta erros” sem direito à defesa, que “seleciona propostas” sem critérios acessíveis, que “julga processos” com base em correlações estatísticas, tudo isso enfraquece os pilares do Estado de Direito.
E se fosse no Brasil?
Se esse experimento ocorresse aqui, haveria clara afronta à Constituição. A função pública exige investidura, responsabilidade e obediência ao princípio da legalidade. A Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011), a LGPD e o Marco Civil da Internet estabelecem exigências de transparência e governança algorítmica, ainda tímidas, mas fundamentais.
A nomeação de uma IA como autoridade pública, sem regulação, seria objeto imediato de Ação Direta de Inconstitucionalidade.
IA: Espelho para o futuro
O caso Diella é emblemático porque materializa um dilema contemporâneo: vamos usar a IA como instrumento de fortalecimento institucional, ou como atalho tecnocrático para concentrar poder?
Não se trata de rejeitar a tecnologia. Pelo contrário: IA bem regulada e sob controle humano pode ser aliada na luta contra a corrupção, na eficiência da máquina pública, na análise de dados.
No entanto, jamais podemos nos iludir: o poder nunca é neutro. E quando ele começa a usar uma voz robótica para se anunciar como imparcial, é justamente quando devemos redobrar nossa vigilância.
Afinal, como dizia o escritor inglês G.K. Chesterton: “A maior das tiranias é aquela exercida em nome do bem”.
— G.K. Chesterton, escritor
*Alexander Coelho – sócio do Godke Advogados e especialista em Direito Digital, Cibersegurança e Inteligência Artificial (IA), é membro da Comissão de Inteligência Artificial e Privacidade da OAB/SP. Pós-graduado em Digital Services pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Portugal).






