O famoso clichê “enemies to lovers” (de inimigos a amantes) pode até parecer recente, impulsionado pela era do TikTok, mas essa fórmula narrativa tem raízes profundas, atravessando séculos. Desde clássicos como Orgulho e Preconceito até comédias românticas dos anos 2000 e os atuais sucessos do streaming, essa dinâmica continua a encantar o público.
A fórmula do sucesso
No artigo “As delícias da picuinha”, a autora e cineasta Vivy Corral explora, com humor e precisão, os motivos pelos quais as histórias de rivalidade que se transformam em paixão permanecem tão irresistíveis. Ela analisa referências clássicas e contemporâneas, abrangendo desde a literatura até o cinema, sem esquecer os animes, para ilustrar como a tensão entre os personagens cria uma conexão imediata com o público.
Vivy explica como esse mecanismo funciona e por que se tornou ainda mais proeminente na era das maratonas de séries, onde cada gancho precisa ser irresistível para manter a atenção do espectador.
Vamos falar a verdade: quem nunca suspirou quando o Sr. Darcy anda até Elizabeth com o sol da manhã atrás dele e simplesmente confessa seu amor com o rabinho entre as pernas?
— Vivy Corral, cineasta e autora
O amor e o ódio na cultura pop
Essa relação de amor e ódio está profundamente enraizada na cultura popular. Em E o Vento Levou (1939), Scarlett e Rhett constantemente se provocam. Da mesma forma, na divertida comédia Abaixo o Amor (2003), os personagens de Renée Zellweger e Ewan McGregor competem para superar um ao outro, assim como em 10 Coisas que Odeio em Você (1999). O livro Vermelho, Branco e Sangue Azul (2019) também conquistou muitos fãs e foi adaptado para o streaming.
Animes: um campo fértil para o ‘enemies to lovers’
Não se pode deixar de mencionar os animes, que também exploram essa temática de forma brilhante. Em Diários de uma Apotecária (2023), Jinshi irrita constantemente a pragmática Maomao, que só quer trabalhar, preparar seus venenos e evitar a morte (especialmente por ser funcionária de um palácio real). Já Kaguya-sama: Love is War (2019) é outra obra-prima onde personagens com egos inflados transformam o romance em um verdadeiro campo de batalha.
A tensão narrativa como chave
Mas por que, especificamente na era das maratonas de séries, essa trope se tornou tão dominante? A resposta reside menos no romance em si e mais na arquitetura da tensão narrativa. Casais felizes e estáveis não geram conflito e, sem conflito, não há história. O “enemies to lovers” resolve essa questão entregando o nível máximo de tensão possível.
Ao colocar protagonistas em posições opostas, seja por rivalidade profissional, guerras de clãs ou simples preconceito, o roteirista cria um campo magnético imediato. O espectador escolhe um lado, e isso o prende à tela.
Ódio e amor são sentimentos de alta intensidade. Diferente do amor à primeira vista, que exige uma suspensão de descrença imediata, o ódio exige convivência. Para brigar, os personagens precisam interagir. Essas interações, carregadas de subtexto e tensão sexual não resolvida, criam ganchos poderosos ao final de cada episódio. É a promessa de que a barreira vai quebrar que nos mantém vidrados.
A superação do orgulho
O sucesso técnico, porém, reside no “conflito de valores”. Para que o inimigo se torne o amante, o protagonista é obrigado a rever suas próprias crenças. Ele precisa admitir que estava errado sobre o outro e, consequentemente, sobre si mesmo. Essa vulnerabilidade forçada gera uma jornada de amadurecimento robusta e identificação imediata. Afinal, quem nunca precisou engolir o orgulho?
Aí está a mágica final: a catarse de ver o outro, visto como inimigo em um mundo tão polarizado quanto as famílias de Romeu e Julieta (1597), tornar-se o objeto de afeto. É a construção de uma ponte que, no fundo, todos nós queremos cruzar, ou queremos que alguém cruze, com o sol nas costas e dizendo ‘te amo ardentemente, Elizabeth’.
— Vivy Corral, cineasta e autora






